O capitalismo dos EUA não é grande demais para cair

O seguinte editorial da edição número 15 de Socialist Revolution, a revista estadunidense da Corrente Marxista Internacional, foi publicado em 8 de maio de 2019. O cenário está claramente montado para outra perturbação econômica convulsiva. A crise que se aproxima trará à superfície todas as dúvidas e frustrações acumuladas durante os chamados anos de boom.

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Impulsionada pelos gigantes da tecnologia como Amazon, Apple, Google e Microsoft, Wall Street está desfrutando do mais longo mercado em alta na história do país. O índice Dow Jones está em níveis recordes, tendo atingido mais de 20.000 pontos desde a baixa de 6.469,95 pontos em março de 2009. O S&P500 disparou 334% nos últimos 121 meses. E NASDAQ disparou de 1.650 pontos em fevereiro de 2009 a 8.118 pontos, um aumento de aproximadamente 500%. O crescimento do PIB é estável e o desemprego nos EUA caiu de mais de 17%, em 2009, para um pouco mais de 7%. O que poderia dar errado?

Medo do futuro

Infelizmente para os capitalistas – e para os bilhões de nós que somos forçados a viver sob seu governo – nenhuma das contradições internas do sistema foi resolvida na década desde a Grande Recessão. Os trabalhadores ainda não conseguem comprar de volta o valor total das mercadorias e serviços que produzimos, o defeito fatal do capitalismo que levará inevitavelmente a mais uma crise de superprodução.

Os 1% mais ricos dos estadunidenses possuem tanta riqueza quanto os 90% da base e “ganham” mais de 198 vezes mais a cada ano. Jeff Bezos, Bill Gates e Warren Buffett, coletivamente, detêm mais riquezas do que os 160 milhões de estadunidenses mais pobres – o equivalente às populações combinadas da California, Texas, Illinois, Michigan, Ohio, Pennsylvania, New York, Georgia e Florida.

Enquanto isso, um quinto dos estadunidenses têm patrimônio líquido zero ou negativo. 78% dos estadunidenses vivem de um cheque de salário a outro. Ajustado pela inflação, o salário médio por hora atingiu o pico há 46 anos. A taxa de 4,03 dólares por hora, registrada em janeiro de 1973, tinha o mesmo poder de compra de 23,69 dólares atuais – e mesmo assim o salário mínimo federal é de 7,25 dólares por hora. Esta é uma situação insustentável – e não esqueçamos de que estes são “bons tempos”.

Mesmo antes da próxima crise, os indivíduos mais ricos do mundo estão profundamente preocupados. Isto foi detalhado em um artigo recente do Washington Post intitulado “Capitalismo em crise: Bilionários Estadunidenses Preocupados com a Sobrevivência do Sistema que os Tornou Ricos”:

Pela primeira vez em décadas, o futuro do capitalismo é tema de debate entre os candidatos à presidência e uma fonte crescente de angústia para a elite empresarial dos EUA. Em lugares como o Vale do Silício, as encostas de Davos, na Suíça, e nos salões da Harvard Business School, há uma sensação de que o tipo de capitalismo que uma vez tornou os EUA uma inveja econômica é responsável pela desigualdade e ira crescentes que estão desgarrando o país…

Uma das aulas mais populares da Harvard Business School, sede da próxima geração de executivos da Fortune 500, foi uma aula sobre “reimaginar o capitalismo”. Há sete anos, a aula optativa começava com 28 alunos. Agora, existem quase 300 frequentando-a. Durante esse período, os estudantes se tornaram cada vez mais cínicos em relação às corporações e ao governo, disse Rebecca Henderson, a economista de Harvard que dá aulas no curso. “O que as pesquisas de confiança dizem é o que vejo”, disse ela. “Eles estão realmente preocupados com a direção que os EUA e o mundo estão tomando”.

Ray Dalio, o fundador de BridgeWater Associates, o maior fundo de hedge do mundo, também está inquieto. Dalio, que tem uma fortuna estimada em 17 bilhões de dólares, emitiu um manifesto argumentando que o capitalismo deve “evoluir ou morrer”, “Sou um capitalista e acho que o capitalismo está quebrado”. Como informou Financial Times, ele disse recentemente aos ouvintes de 60 Minutes: “o capitalismo está ‘em uma situação especial’. Os estadunidenses poderiam reformá-lo juntos, ‘ou faremos isto em conflito’”.

De acordo com o New York Times, a principal preocupação expressa na conferência global anual do Milken Institutefoi “uma reação violenta contra o capitalismo”. Ray Dalio esteve presente e disse aos seus colegas bilionários: “Se você tem uma população onde há uma grande brecha de riqueza e você tem uma crise econômica, é quase certo que há um conflito”. Jamie Dimon de JP Morgan Chase concordou com Dalio que o capitalismo necessita ser reformado para sobreviver. E Alan Schwartz de Guggenheim Partners resumiu isto de forma sucinta: “O que realmente está chegando é a guerra de classes”.

Os marxistas entendem que a guerra de classes sempre está presente, “carregada de uma luta ininterrupta, ora oculta, ora aberta”. Mas nos últimos anos tem sido um assunto unilateral, já que os ganhos conquistados no passado pelos trabalhadores em luta foram impiedosamente recuperados pelos capitalistas. Como Warren Buffett disse: “houve uma guerra de classes durante os últimos 20 anos, e minha classe a ganhou”.

Embora Buffett possa estar certo sobre as últimas décadas, ele revela as ilusões e os horizontes limitados até mesmo dos capitalistas mais exitosos. Os capitalistas não ganharam – nem de longe. A história ainda não terminou. Mais ao ponto, os capitalistas não podem oferecer nenhuma saída do impasse. Eles são escravos da lógica de seu sistema – lucrar ou perecer – e estão correndo para outra crise com os olhos vendados.

Outro 2008?

A Grande Recessão, que durou do quarto trimestre de 2007 ao segundo trimestre de 2009, registrou um colapso da produção não-agrícola de 753 bilhões de dólares. Cerca de 8,1 milhões de empregos foram perdidos. 8 trilhões de dólares da riqueza do mercado de valores evaporaram. Até 10 milhões de estadunidenses perderam suas casas. Os bancos “grandes demais para falir” foram destroçados e chegaram, com o quepe na mão, junto ao governo para a maior esmola corporativa da história.

Naquele momento, o público foi informado que o resgate chegava a 700 bilhões de dólares. No entanto, segundo o Inspetor Geral Especial para o TARP [Troubled Assets Relief Program – Programa de Alívio de Ativos Problemáticos – NDT], o comprometimento total do governo foi na verdade de 16,8 trilhões de dólares. O segredo foi justificado pelo então Presidente da Reserva Federal, Ben Bernanke, que argumentou que “revelar detalhes do tomador do empréstimo criaria um estigma” para as empresas que recorreram aos empréstimos massivos do governo. Nem um só banqueiro estadunidense foi levado à prisão por seu papel na crise, nem um só bode expiatório para o crime cometido contra a humanidade por todo um sistema.

Junto com o mercado de ações, quase tudo é maior hoje do que em 2008. O PIB cresceu 21% e a dívida nacional 207%. E enquanto a população cresceu 8%, a produtividade do trabalho cresceu apenas 1,1% ao ano. Como pode um crescimento tão modesto do PIB, da população e da produção por trabalhador se enquadrar na triplicação, quadruplicação e até mesmo quintuplicação dos índices do mercado de ações? Na economia, como na natureza, o que sobe tem que descer – e quanto mais alto chega, de mais alto cairá. O palco está claramente montado para outra perturbação econômica convulsiva, que pode ocorrer mais cedo do que mais tarde.

Os cortes de impostos de Trump e as taxas de juros historicamente baixas da Reserva Federal são uma tentativa para “estimular” a economia e evitar a próxima recessão. Mas ao usar essas medidas para prolongar artificialmente o boom eles estão gastando suas opções para quando as coisas ficarem realmente feias. Com a dívida nacional mais do que o dobro do que era há uma década, há muito pouco espaço para resgates ou até mesmo para um tímido gasto em termos de estímulos keynesianos para quando chegar a próxima crise. Uma austeridade ainda mais cruel do que tudo que já vimos nas últimas décadas estará na ordem do dia. E, como sempre, os trabalhadores, e particularmente as mulheres, os negros, os latinos e os mais pobres dos pobres serão os mais atingidos.

No entanto, o contexto político e social será significativamente diferente desta vez. Da última vez, a avalanche veio durante a transição caótica entre o “pato coxo” Bush e as promessas de Obama de “esperança e mudança”. Obama foi visto como tendo herdado a bagunça e muitos lhe deram passagem. A culpa caiu sobre Alan Greenspan, Bush e a “exuberância irracional” dos tempos. Hoje, o mais impopular presidente da história recente está no comando. De fato, a única medida em que tem mais de 50% de aprovação é em seu manejo da economia (55%), para a qual Trump reivindicou alegremente crédito total. E, apesar de que ele vai se tornar rapidamente o bode expiatório de outros, até mesmo seus partidários mais fiéis terão sua fé abalada pela tempestade que se aproxima, especialmente se ele estiver no cargo quando se produzir o desastre econômico.

Grande demais para cair?

Na década de 1970, Bernie Sanders apoiou a nacionalização das principais indústrias do país. Desde então, ele se direcionou cada vez mais à direita, cada vez mais perto dos Democratas e sempre mais perto dos corredores do poder. Hoje ele está a favor de fracionar os megabancos e de aumentar os impostos sobre os ricos. Isto soa radical na superfície, mas, na prática, nenhuma dessas medidas pode dar um fim à dominação do capital financeiro sobre nossas vidas. Se forem fracionados, os bancos meramente se reagruparão com o tempo, assim como toda confiança perdida no passado eventualmente ressurgiu maior e mais forte do que antes. E, se os impostos forem mais pesados, os ricos sempre encontrarão meios de ocultar seus ativos ou de transferir o fardo aos trabalhadores por meio de aumentos de preços ou outras medidas.

Para os marxistas, “grande demais para cair” significa “grande demais para ser deixado em mãos privadas”. A única solução é nacionalizar as alavancas fundamentais da economia, começando com os bancos e pelo resto das empresas do Fortune 500. Esse punhado de empresas fatura 13 trilhões de dólares em receitas e representa cerca de dois terços do PIB total dos EUA. Seus lucros combinados cresceram dez vezes desde o crash de 2008 e agora estão em 1 trilhão de dólares, com um valor de mercado de 21,6 trilhões de dólares. São entidades colossais. Os ativos de JP Morgan Chase, por si só, podem ser usados para zerar o cartão de crédito e a dívida estudantil de cada um dos estadunidenses.

Bilhões de pessoas em todo o mundo dependem dos bens e serviços produzidos pelos trabalhadores dessas empresas. Ao trazer à propriedade pública empresas como Walmart, Exxon-Mobil, Berkshire Hathaway, Apple, UnitedHealth, Amazon, AT&T e General Motors, grandes áreas da economia ficariam a salvo dos caprichos da especulação, da corrupção e da má administração. Ao consolidar os maiores bancos em uma só entidade de propriedade e administração pública, poderíamos proteger as poupanças dos trabalhadores e garantir empréstimos acessíveis para todos. Ao integrarmos todas as empresas nacionalizadas em um plano racional de produção sob o controle e gestão democrática dos trabalhadores, todos podem desfrutar de uma alta qualidade de vida.

Para aqueles que dizem que tais infrações à propriedade privada seriam “antiamericanas”, devemos lembrar que a Revolução Americana expropriou a propriedade dos maiores latifundiários e apoiadores da Coroa Inglesa, enquanto Abraham Lincoln expropriou bilhões de dólares em propriedade humana – tudo isso sem indenização aos antigos proprietários.

Um novo nível de crise e de luta

Muita água passou sob a ponte capitalista desde que GW Bush estava no poder e muita experiência foi acumulada pelos trabalhadores e jovens. A Primavera Árabe, Wisconsin, Occupy e as eleições de 2016 deixaram suas marcas. Milhões de Millenials e da Geração Z estão muito abertos às ideias socialistas e até mesmo as gerações mais velhas testaram sua confiança no sistema. Incrivelmente, 31% dos estadunidenses acreditam que outra guerra civil é provável no próximo período, um sinal da polarização acentuada que continua a empurrar os limites do capitalismo estadunidense à medida que o impasse se arrasta para outra década.

A crise que se aproxima trará à superfície todas as dúvidas e frustrações acumuladas dos chamados anos de auge. A percepção de que “isto é o melhor que se pode ter” e de que “as coisas somente piorarão de agora em diante” levará a um profundo questionamento do capitalismo e de seu direito de continuar a existir. A classe trabalhadora já começou a se mover, com os professores e enfermeiras abrindo o caminho na maior onda de greves desde 1986. O interesse generalizado no socialismo se tornará cada vez mais concreto; não é algo apenas para ser aspirado ou “esperar” que este ou aquele político traga – mas para lutar.

Inevitavelmente, haverá uma etapa reformista em massa à medida em que as pessoas vão testar cada opção dentro do sistema antes de decidirem ultrapassar os seus limites. Mas o sistema dos bilionários tem muitas lições duras em estoque para a maioria e não oferece soluções significativas ou duradouras dentro de seus limites. É isto que os mantém insones à noite. Sob tais condições, as pessoas aprendem e mudam com rapidez. Junto à polarização mais nítida à direita, milhões se moverão rapidamente à esquerda. Esta pode ser a música do futuro – mas não de um futuro muito distante – e devemos nos preparar ativamente.